domingo, 30 de março de 2008

Pret-à-porter sobre trilhos



Se não dá para ser perfeito, dá teu jeito, improvisa. E foi o que fizeram os comissários de bordo do trem que sai de Águas Calientes, onde fica Machu Picchu, para Cusco, no Peru.

Cansadas, voltávamos eu e uma amiga de um dia de maratona morro acima. Como não queríamos perder nada da visita às ruínas mais famosas do continente, já estávamos na rua antes de o sol aparecer. Era setembro de 2007. Madrugamos para pegar o ônibus das 5h30 e garantir que estaríamos entre as 400 pessoas autorizadas a subir Waynapicchu, a montanha colada a Machu Picchu, a que se vê em todas as fotos panorâmicas. Já tínhamos decidido ignorar os conselhos comprovadamente exagerados de um amigo peruano: "volta e meia morre um turista lá". Foi tranqüilo, havia degraus e cordas para tudo que é lado. O fôlego só perdemos com a vista das alturas da incrível construção inca.

Na volta, aí sim mortas de cansaço, tentamos dormir no trem. Impossível. O show ia começar.

Como num avião, os comissários de bordo ofereciam produtos aos passageiros. Mas não era só entregar aquele catálogo, não. A apresentação era mais caprichada e calorosa. Afinal, meio trem ja estava bocejando. Ninguém ia dar a mínima para o folheto.

Eis que o funcionário que há pouco nos servira um café abre abruptamente a cortina que separava o espaço dos assentos do compartimento dos comissários. E pára de lado, ombro esquerdo levemente inclinado para baixo, mãos no bolso. Aperta os olhinhos e arqueia a sombrancelha. Metido num suéter preto e branco ele dispara pelo corredor pisando forte e lançando olhares 43 pelo vagão lotado. Era um desfile de moda para vender roupas de alpaca, animal que dá uma lã finíssima e cara. Apesar de passar longe dos padrões Armani, nosso comissário despertou aplausos e gritinhos das passageiras, o que só fez aumentar sua autoconfiança.

Ele estava super à vontade. O mesmo não se pode dizer da sua colega. Tímida, tentava compensar a falta de jeito com sorrisos. Para sua sorte, havia desinibidas a bordo. Duas adolescentes peruanas nem titubearam quando chegou o convite. Se enfiaram em ponchos e casacos e também distribuíram mãos na cintura e olhares por cima do ombro vagão adentro. A platéia esfriava com as entradas femininas. Mas aí voltava o aspirante a rosto Calvin Klein para inflamar a galera.

E tome olhinhos apertados e cara de mau.

domingo, 23 de março de 2008

A banca pornô

Foi numa esquina movimentada de Buenos Aires, mas bem que poderia ser aqui no Rio.

Era véspera do primeiro dia de férias e o chefe pediu para ontem uma tarefa que ela acreditava ser para dali a dois meses. Teve que trabalhar até as 23h, não havia remédio. Ih... e a encomenda importante para levar na viagem? Já estava até paga. O jeito foi pedir à vizinha para pegar o pacote para ela.

Solícita, a amiga aproveitou que o marido descera com um amigo para comprar bebida para o jantar e terceirizou a tarefa.

- O quê? Você tá me zoando?

- Não, não é piada. É isso mesmo que você ouviu. É na banca aí da esquina. O cara já está esperando ir alguém lá pegar a encomenda.

Os amigos pararam em frente à banca, minuciosamente descrita minutos antes. Era ali mesmo. O estabelecimento também se dedicava a outras mídias além da impressa, outros negócios, digamos. As paredes estavam forradas com DVDs eróticos piratas. Entre anões pervertidos, maratonistas sexuais e afins, pergunta o marido:

- Che, ficou pronta a cópia do 'Chicken Little' e do 'Corcunda de Notre Dame', da Disney? É para aquela moça do 200 que sempre compra desenhos animados aqui.

O jornaleiro olhou para o amigo do cara, sério e vestido de terno e gravata, e despachou logo a dupla enxugando uma gorda gota de suor que escorria pelo pescoço.

- A gente não faz isso aqui, não.

Chicken Little e o Corcunda já não estavam mais ali há algumas horas. Foram fazer companhia a astros pornôs nacionais no porta-malas de um policial das redondezas.

sexta-feira, 21 de março de 2008

Caribe gaúcho


Já vai tarde o verão que acaba de dar adeus. Aqui no Rio tomamos mais banho de chuva que de mar e até vestimos casaco para enfrentar 16,6 graus há uns dois meses. Eu esperava muito da estação. Voltara de umas férias frustradas no Caribe, em novembro, e queria revanche debaixo do sol carioca.

Antes de aterrissar nas areias da minha cidade, parei três dias em Porto Alegre. A idéia era bater papo com amigos, conhecer melhor a capital do Rio Grande do Sul, sair para dançar. A minha fúria veranista estava guardada para a Cidade Maravilhosa. Mas fui levada para Capão da Canoa, a uma hora e meia da capital sob um céu sem nuvens e o calor com os quais sonhei e não vi em uma semana de férias nos litorais costa-riquenho e panamenho. Me empolguei. Enfiei na mochila biquíni, boné, canga, óculos de sol, chinelo e dois protetores solares ainda lacrados.

Diante da minha animação, meus cicerones gaúchos, constrangidos, passaram a viagem tratando de baixar a bola do litoral rio-grandense. “A praia é horrível”. “Não é banho de mar, é banho de lodo”. “Você entra de branco e sai de preto”. O circo dos horrores incluía até uma tempestade de areia: “Não dá nem para ficar só tomando sol. O vento nordeste é insuportável”. Meu amigo Rodrigo, o irmão e a mãe praticamente pediam desculpas por levar uma moradora do Rio de Janeiro para Aquele lugar.

Eis que numa curva surge o mar de Capão. “Tá verde!”, gritaram, como quem comemora um gol. E não era só: as ondas estavam pequenas, com espuma branquinha e água na temperatura ideal. Ainda tinha uma brisa para aliviar o calor. Um grupo de nativas desconfiadas dava as costas para o mar e se bronzeava no gramado da praça perto da praia. É uma estratégia já habitual, adotada para driblar a tal ventania que, imaginavam, chegaria a qualquer momento.

Depois de uma semana de chuva no Caribe, e várias outras cinzentas no Rio, confesso: peguei a melhor praia dos últimos cinco meses em Capão da Canoa. Colegas gaúchos que vivem aqui duvidam dessa história. Mas eu juro que é verdade!

terça-feira, 18 de março de 2008

Caras e cores da Argentina



Fui matar a minha sede na Argentina. E a saudade sem fim dos amigos que vivem longe.

Em La Cumbre, Córdoba, me esbaldei na festa de casamento de um casal binacional, o peruano Renzo e a argentina María. Para provar que o afeto não tem fronteiras, além do Brasil, Chile, Peru, Espanha e Itália mandaram representantes.

Na Quebrada de Humauaca, no Norte, me surpreendi com a abrupta mudança de montanhas verdejantes para morros áridos com cáctus em profusão. E, em Purmamarca, um arco-íris em forma de rocha, o Cerro de los Siete Colores, alegrou meu dia. Lá também fui apresentada à porção andina do país, com habitantes de pele morena, cabelos negros e traços culturais muito semelhantes aos que vi no Peru.

Por ali também, a quase 4 mil metros de altitude, me perdi no branco das salinas imensas, onde as nuvens pareciam ao alcance das mãos. A sede de fotos era insaciável: eu, toda de preto, contrastava com a brancura daquela lâmina salgada cercada de montanhas. O intenso reflexo da luz do sol praticamente me cegava, mas não me vencia. Mesmo sem identificar direito o que a telinha de minha câmera digital enquadrava, não lhe dava sossego.

E ainda teve a colonial Salta, La Linda, que merece o apelido; a acolhedora Jujuy; as reconstruídas ruínas de La Pucará, em Tilcara; o ônibus antigo e cheio de passageiros com o qual cruzei um rio como se estivesse em uma picape 4x4, a caminho de Iruya; as deliciosas quinoa e carne de lhama de Humauaca.

Mas o melhor da Argentina foram os argentinos.

Inteligente, carinhosa, e ávida por aprender português, a estrela da viagem foi a pequena grande Anaclara, 7 anos de muita perspicácia e curiosidade. Filha dos meus anfitriões, os simpáticos e para lá de gente boa Moncho e Alejandra, moradores de Jujuy. Já em Buenos Aires, aprendi com Néstor, de La Plata, que Herbert Vianna se inspirou em um livro de Jorge Amado para compor Lanterna dos Afogados. Em português perfeito, me contou de seu interesse pela cultura brasileira, que alimenta com programas de televisão verde-amarelos postados na Internet em... Angola! Sua namorada, Rita, me presenteou com a máscara de Kulan, o espírito sedutor feminino dos aborígenes da Terra do Fogo, a quem tenho que honrar.

Os novos amigos foram presente da minha querida hermana Marcela, com quem sempre tenho algo a aprender. Ela, Caro e Esteban compõem minha família argentina.

Pelas cores das montanhas, pelo branco das salinas, pelas antigas e novas amizades grito como o ator de Caballos Salvajes:

LA PUTA QUE VALE LA PENA ESTAR VIVA!


segunda-feira, 3 de março de 2008

Comunicação rápida sobre totoras


Eu, na Idade da Pedra, com saudade das cartas. E os índios de Urus me dando lição sobre como rapidez na comunicação é tudo em qualquer lugar.

A ilha de Urus fica no lado peruano do Titicaca. É a primeira parada para os turistas que vão conhecer esse incrível lago a 3.855 metros de altitude e que mais parece um oceano. Seus moradores não vivem em terra firme. Eles flutuam sobre totoras, uma espécie de junco que eles vão amontoando sobre uma base que lembra um xaxim. Das totoras fazem o chão, a casa, o transporte e a comida (o gosto é bem sem graça). A vantagem é que quando tem briga na tribo ninguém é obrigado a ficar olhando a cara do outro todo dia. É simples: partem a ilha ao meio e cada um que vá boiar para o seu lado.

Pois nesse lugar para lá de rústico, onde faz um frio tremendo e só uma cortina fecha a porta das casas feitas de torora, os caras têm homepage. E orelhão.


domingo, 2 de março de 2008

A saudade também é doce

Sou anacrônica. Amo receber cartas, mas desde que a Internet virou artigo de primeira necessidade, escrever e enviá-las virou excentricidade. Pratiquei com regularidade o hábito com minha família quando vivi em Madri, em 2004. Meu pai até fez um e-mail, fofo, só para se comunicar comigo. Mas não pegou intimidade com a coisa.

Cabia a minha mãe manter o vaivém de envelopes em dia. Além de notícias de casa, chegavam as do Brasil, através de revistas e jornais que paravam na soleira da minha porta. Eu mandava também umas fotos em papel de vez em quando.

Mas minha mãe se superou nas surpresas via Correios. Estávamos perto da Páscoa, fazendo mil planos de viagem quando um envelope retangular e recheado chega às minhas mãos, trazendo um pouco da minha casa para a Espanha.

Era um pedaço de amor e saudade em forma de barra de chocolate.