quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

A culpa é do frio

Em 2004, vivi em Madri seis meses, os meses mais ricos e divertidos da minha vida. Ganhei uma bolsa para estudar Jornalismo lá com outros 19 profissionais, das américas do Sul e Central. Boa parte do meu bom humor sem fim desses tempos devo aos amigos com quem dividi apartamento no bairro O'Donnell. Éramos seis, de três diferentes nacionalidades. Duas argentinas e um argentino, um peruano e um gaúcho completavam o time.

Todos bonitos, solteiros, simpáticos, inteligentes. Eram 3 contra 3. Mas naquele campo o jogo não passou do 0 x 0.

O apê era uma mansão em um bairro nobre: cinco quartos, camas para sete pessoas, três banheiros, sala imensa, sala de jantar, cozinha com mesa onde cabíamos todos. Ah, e uma suíte com banheira de hidromassagem e espelho gigante. Mas cobertor, nada. Para piorar, o aquecedor era desligado na pior hora, de madrugada, sabe-se lá por quê.

A bolsa não era muito gorda. E todo mundo queria economizar o que podia e não podia para desbravar a Europa. Logo, nada de compras. O jeito era improvisar para não gastar os minguados euros com um edredon. Era fevereiro, inverno, e só tínhamos os lençóis fininhos que couberam nas malas.

Na hora de dormir, eu virava múmia: só deixava as narinas de fora e a roupa que vestia era tanta que mal me mexia. Me escondia em meia dúzia de blusas, meia-calça e meia de lã, cachecol, luva, gorro. Mas não era suficiente. Até que alguém lembrou que os casacos grossos e compridos podiam ser úteis naquele momento difícil. Para também aquecer pés e pernas deitávamos sob uma capa deles em vez de vesti-los. Para a mais baixinha, dois eram suficientes para cobrir todo o corpo. Para o mais alto, três.

O cenário, à noite, já não era nada promissor. Mas o tiro de misericórdia na libido feminina foi dado com o dia claro. Na primeira manhã dos seis sob o mesmo teto, um dos morenos desponta na sala. Cabelo desgrenhado, passos lentos, olhar distraído. E as pernas metidas numa inesquecível calça de flanela apertadinha, bege e quadriculada que só chegava até o meio da canela.

Graças ao frio, estava criada a irmandade Mercosur.